A TRAIÇÃO (capítulo final)



1.
Ela desligou o celular sem acreditar. O movimento de seu braço levando o aparelho da orelha para dentro da bolsa foi acompanhado de uma lágrima. Não podia ser verdade. Isso não estava acontecendo com ela. Simplesmente não fazia sentido. Ele era tão atencioso, tão romântico, tão presente... Ele era perfeito! Tá… ok, ele podia não ser tão perfeito em tudo. Tinha um mau humor matinal insuportável, não ajudava muito com as tarefas domésticas e era pontual de um jeito exagerado, quase um T.O.C. Mas afetivamente com ela e com a filha beirava a perfeição. Era um pai dedicado, paciente, apaixonado, que levava a filha para todos os lugares, inclusive para o estádio de futebol. Tinham um companheirismo muito bonito de se ver. E para ela, ele era igualmente cativante. Era do tipo que dava flores nas datas especiais, pensava em presentes surpreendentes e jogos de sedução. Fazia questão de saírem juntos pelo menos uma vez por semana para não deixarem o hábito de namorar sucumbir à rotina familiar. Conquista-lo era um dos grandes orgulhos de sua vida e sempre se sentiu muito segura em relação ao amor que ele demonstrava à família que construíram. Achava que sua relação era diferente da grande maioria das relações que conhecia; havia mais cumplicidade, mais intimidade, mais... amor mesmo. E agora seu mundo tinha ido ao chão. Havia sido traída.

2.
Sua irmã tinha acabado de ligar para dizer que tinha visto seu marido, o quase perfeito, aos beijos numa casa de shows popular da cidade, na quinta à noite. Era sábado pela manhã e sua irmã lhe confidenciara que passou uma sexta-feira infernal sem saber como lhe reportaria o trágico flagra. E só contou porque não tinha dúvidas. O cunhado se beijou por mais de meia hora com uma mulher na pista de dança da casa de pagode. Descreveu as roupas que ele vestia e o horário do ocorrido, que batiam exatamente com os trajes usados quando ele se despediu lhe dando um beijo carinhoso de boa noite ao sair para o “clube do uísque dos amigos”: um encontro aparentemente inocente, repetido quinzenalmente, sempre no mesmo restaurante luxuoso especializado em carnes nobres. O fato de ter sido sua irmã a portadora da notícia fechava brechas para qualquer engano. Confiava cegamente nela e sabia que sua irmã tinha consciência da gravidade do relato e de como aquilo destruiria sua vida; ela não contaria se não tivesse certeza absoluta. Poderia haver uma circunstância, um contexto, uma explicação. Mas o que ouviu era um fato: seu marido se beijara por meia hora com outra mulher na quinta à noite. Desorientada pegou a chave do carro e correu para o primeiro lugar que veio à mente: a casa de seus pais.

3.
Durante o trajeto, além de arrasada, ficou com medo da reação de sua mãe. Vivia cobrando que a filha era muito permissiva com o marido, que não gostava dessa história dele sair sozinho com frequência e que ela tinha que ter rédea curta e abrir o olho. Não que desconfiasse de nada especificamente. Adorava o genro. Mas se dizendo mais experiente, aconselhava a filha a ter mais cuidado. Por isso, ela teve receio que sua mãe a recebesse com o famoso “eu te disse, eu te disse”. Tocou a campainha e quando sua mãe abriu a porta só conseguiu correr para abraça-la e desabar no choro. – “Ele me traiu, mãe, ele me traiu”. Ao contrário do que ela imaginava (e percebeu que tinha sido injusta em esperar uma postura diferente) o que obteve da mãe foi acolhimento. Sua mãe já havia ouvido a história através de sua irmã e estava preparada para oferecer carinho e colo. Após um primeiro momento de desabafo, passaram a conversar. Mas os conselhos da mãe, esses sim, a surpreenderam. – “Filha... calma... É homem, né filha... Infelizmente os homens são assim... – “O que? Logo você, mãe, com esse discurso machista? Não tem diferença nenhuma”! – “Eu sei, minha filha, que atualmente, graças a Deus, as coisas estão muito mais equiparadas e vocês mulheres de hoje têm muito mais liberdade do que a gente tinha na minha época. Mas homem é tudo igual...” – “Não mãe, não vem com essa! Não entra na minha cabeça que pode ser normal um cara num sábado me mandar flores porque fui promovida no trabalho, sair para jantar comigo para celebrar, ficar a noite toda abraçado comigo da forma mais amorosa do mundo e na quinta imediatamente seguinte agarrar uma mulher numa boate qualquer! Você diz que isso é coisa de homem! Que tipo de homem é esse? Isso não é coisa de homem! É coisa de um robô! Só um robô pode ser capaz de fazer algo assim!” –“Eu sei, filha... É difícil pra gente entender... Mas os homens são assim... Seu pai mesmo...” – “O que? Meu pai? Do que você está falando?” – “Sim, seu pai. Não hoje em dia, é claro. Quer dizer, faz muitos anos já... Mas quando era mais jovem, seu pai não era fácil... A gente já teve brigas homéricas... E sabe o que me fez permanecer casada com ele? Ele sempre voltou para casa. Nunca me expos e sempre priorizou a família. Mas eu não sou boba, sempre percebi quando algo estava acontecendo. Acabava perdoando porque nossa família era mais importante do que uma aventura com uma “zinha” qualquer. E acho que você devia fazer o mesmo…”



4.
Ela saiu da casa da mãe ainda atônita. Seu pai, aquele homem família, que ela idolatrava, modelo de integridade, já havia traído sua mãe na juventude. Seu mundo perfeito tinha esfarelado diante de seus olhos em poucos minutos. Tentando se manter equilibrada e botar a cabeça no lugar, ligou para sua melhor amiga que morava não muito longe dali. Ainda faltava cerca de duas horas para pegar sua filha que estava numa atividade extra classe na escola, naquela manhã de sábado catastrófica. Para sua amiga conseguiu contar tudo com um pouco mais de calma, demonstrando toda sua decepção diante da atitude sórdida do marido, até pouco tempo, impecável. Sua amiga recebeu a notícia com serenidade. Apesar de sempre julgar que entre as amigas, seu marido estava no topo do ranking dos mais confiáveis, era daquelas que achava que não se poderia colocar a mão no fogo por homem nenhum. Surpresa mesmo ficou, foi quando ela disse que iria se separar. “Está louca amiga?! Vai botar um casamento a perder por causa de uma pisada de bola boba?!” – “Quem botou o casamento a perder foi ele, não eu! Pelo amor de Deus! Eu sou a vítima da história, de que lado você está?!” - “Do seu lado, amiga, é claro. E por isso que te peço para pensar melhor nessa história de separação. Pelo que você sabe nem rolou sexo, né? Foi só beijo?” – “Pelo horário que minha irmã viu a cena e pela hora que ele chegou em casa, tudo indica que ele saiu do bar direto para casa...” – “Então, amiga... devia estar bêbado... Estava entre os amigos... Meu irmão já me disse que das vezes que traiu a namorada nem curtiu de verdade... Já traiu até para mostrar para os amigos que era garanhão... Homem tem dessas coisas... São infantis demais... Não vale a pena acabar o casamento por um único deslize desses.” – “Não é apenas um deslize, uma pisada de bola boba! Não se trata da profundidade do contato, da duração, não tem diferença entre uma mão, uma língua ou um pau... É sério, é grave! Ele assumiu um compromisso! Ninguém botou uma arma na cabeça dele... Se tivesse cansado, se queria beijar mulheres em boates, que ficasse solteiro... Mas não! Ele estava comigo... E dizia que me amava... Quase todo dia. Se duvidar, até no mesmo dia que beijou outra!  Como perdoar, como compreender? Ai, que ódio! O sacana ainda vive dizendo que só gosta de blues e rock ‘n roll e que pagode é baixo nível... E onde ele estava? No Coliseu do Sambão! Escroto mentiroso!” – “Eu sei que é difícil amiga... Mas pense bem... nós seres humanos, somos fracos...” –“Eu não sou fraca!” – “Talvez não nessa área... E olhe, te digo mais, viu: a situação está feia aqui ‘fora’. Há quanto tempo você me vê solteira? Quem tem seu marido que preserve. No mercado só tem homem casado, sem caráter ou viado... Aff, o que tem de viado hoje em dia...” – “É por isso que a gente se fode! É por isso que mulher é traída o tempo todo! Todo mundo acha que deve perdoar… Por que? Por carência? Por que temos medo de ficar sozinhas? Vá chifrar um homem pra ver se ele perdoa! Isso tem que acabar… Se toda mulher desse fim no relacionamento no menor sinal de traição de seu homem, queria ver se eles não paravam de aprontar! Mas não… Ficamos nessa de que eles são imaturos e que nós temos que ponderar e pensar na família… Chega!" - "Pois é amiga, mas vai dizer que você não é mais madura? Que você não vai pensar na sua filha, antes de tomar a decisão? É inerente à nossa condição feminina… -"Ah, não sei, não… Não sei se sou capaz de perdoar…”

5.
Saiu da casa da amiga ainda com tempo para pegar a filha. Assim, pegou o caminho mais longo para chegar à escola. Seria bom dirigir um pouco para pensar. Não sabia ainda como encarar o marido naquele dia; ele tinha ido surfar e combinaram de se encontrarem em casa por volta do meio dia para almoçarem na casa dos pais dele, hábito semanal do qual ele não abria mão pois era “muito família”. Aquele cínico filho da puta! Ligou o rádio. Num programa de relacionamento uma garota falava sobre o acordo que chegou com seu companheiro: conscientes de que sentir desejo por outras pessoas é inerente ao ser humano, uma vez por ano eles combinavam de viajar cada um para um lugar diferente durante um final de semana com liberdade para fazerem o que quisessem. E o que acontecesse nessas viagens jamais seria discutido. Tinham algumas regras: não ficar com pessoas conhecidas ou que pudessem ter algum vínculo com conhecidos, serem extremamente discretos e, obviamente, sempre usarem camisinha. Mas durante o resto do ano a fidelidade era a regra. Preferiu desligar o rádio. Seria essa a solução? Seria essa a evolução para uma relação equilibrada? Um relacionamento aberto? Seria tão necessário assim concretizar o desejo que eventualmente surge por outra pessoa? A relação monogâmica estava com os dias contados? Chegou na escola da filhinha no horário combinado. Sua pequena entrou no carro animada e nem estranhou a cara abatida de quem tinha chorado muito naquela manhã. A filhota, tagarela que só ela, já chegou contando a historinha que tinha ouvido no evento literário: a linda princesa depois de sofrer um feitiço da bruxa malvada, finalmente encontra o príncipe encantado no baile, se apaixonam, se casam e são felizes para sempre. Inevitavelmente ela se lembrou de quando tinha idade da filha e o quanto se fascinava com as histórias de princesas e príncipes encantados; lembrou da brincadeira que fazia um pouco mais velha com as amigas, em que tentavam prever a idade que iriam casar e colocavam num pedaço de papel o nome do menino que gostavam à época; lembrou de quando se apaixonou pelo seu marido; do pedido de casamento, dos votos emocionados e sinceros em cima do altar e chegou em casa resolvida: não, não haveria perdão.

Comentários

  1. Muito boa!!! Mas queria que esta história não terminasse no capítulo 5... :)

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    Respostas
    1. Rsrs… Obrigado! Mas deixe eu ir treinando com os curtas metragens… Nesse formato que estou propondo, acredito que uma história que se desenrole por mais de uma semana pode causar certo tédio… Mas em breve me aventuro por contos mais longos… Quero ver se termino um romance até o fim do ano… Vamos ver se consigo.!

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  2. Ok, respeitarei, mesmo sabendo que não iria me causar tédio... um bom texto, uma boa história, um bom livro, nunca entendiará os que amam ler!! Pois então, aguardarei os contos mais longos e o romance...
    Está muito claro que você consegue!!!

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  3. Será? Veremos, veremos… rs… Obrigado pela presença por aqui

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  4. Presença garantida!!! Estou adorando seus contos!!!

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