46. O Movimento
fonte da foto: http://www.irimar.com.br/thumbs/produtos/32criado_mudo_antoniete_3_gav_thumbModal.jpg
Hoje quero um texto leve. Que lave a alma. Com calma.
Cores brandas. Tons pastéis. Areia da praia, raiar do dia.
Hoje quero descansar. A mente. Inadiavelmente.
Sem citar as coisas que quero deixar para trás. Ou para amanhã.
Sequer, imaginar.
Hoje quero cafuné, massagem no pé.
Quero o início da manhã, o fim da tarde e a madrugada.
Hoje quero o movimento de fechar o livro para pegar o copo d’água no
criado mudo.
Mudo.
Vejo-me
na cama à noite. Depois de lavar a louça do lanche noturno e desligar a
televisão. Depois de ter trancado a porta e fechado as janelas. Depois de ter
tomado banho, escovado os dentes e colocado a bermuda de dormir. Depois de checar
as últimas mensagens, postagens, bobagens colocando o celular para carregar.
Estirado
na cama, no silêncio da noite, fixo-me em apenas um movimento: o singelo movimento
de beber água enquanto leio o livro da vez.
O
copo d’àgua no criado mudo deve estar bem cheio, quase transbordando. Não se
sabe exatamente quando a leitura será vencida pelo sono. É preciso um copo
cheio para dar conta de todos os goles possíveis até adormecer, deixando uma
reserva para uma eventual sede notívaga. E uma vez deitado na cama, levantar-se
para ir à cozinha ou sob qualquer outro pretexto, não é uma possibilidade. Nem
pensar. Só em caso de risco grave de saúde de um ente muito querido. Atenção: o
risco deve ser grave e o ente muito querido.
Deitado
de barriga para cima, com o livro às mãos, a cabeça no travesseiro e o copo
cheio de água no criado mudo, o cenário está pronto. A versão do paraíso em
dias de cotidiano urbano insano.
À
página 361 de um total de 443, concluo mais um capítulo. Ainda não será nessa
sessão que chegarei ao final do livro. As leituras noturnas tendem a ser
curtas, de 10 a 30 páginas por noite, a depender da relação ”sono x empolgação”
com a trama. Com tanta coisa para se fazer durante o dia de trabalho da semana
e com tantas outras coisas para se fazer no fim de semana, até me ressinto de reservar
à leitura um momento tão estreito. Nobre, mas estreito.
Mais
uma vez recorro à máxima de valorizar o que posso, e não o que quero. Se é o
tempo possível, que é bom que ele existe.
Ao
final do capítulo decido que há energia para mais um. É nesse momento que
pratico o movimento.
Coloco
a mão esquerda na parte superior do livro, postando os dedos médio, anelar e
“mindinho” na face do fundo do objeto. O polegar escora a capa frontal,
enquanto, muito sagazmente, o indicador se coloca no interior do livro,
justamente na página onde a leitura foi suspensa, para não correr o risco de
perde-la.
Nesse
instante, solto a mão direita, deixando o livro seguro exclusivamente pela mão
esquerda, apoiando-o no meu peito. A mão direita desloca-se em direção ao
criado mudo, alcançando rapidamente o copo. Com cuidado, pego o copo e o trago
na direção do meu rosto. O movimento é sutil, já que nos primeiros goles, há o
risco de derramar água, já que o copo ainda está muito cheio. E há de se evitar
qualquer incidente que demande a saída da cama, que como salientado acima, só
ocorrerá diante de eventos extremos.
Com
o copo defronte à boca, chega-se ao momento mais delicado. A aerodinâmica e a
gravidade não favorecem o ato de se beber água deitado. É preciso uma certa
dose de perícia.
O
livro, de pé, na mão esquerda, deixa o apoio do peito e deita-se sobre a
barriga, com a mesma disposição dos dedos para manter a página marcada. A
cabeça eleva-se levemente para a frente, formando um angulo de quase 90 graus com
o tórax. Encosta-se o copo totalmente na vertical na boca. Fazer qualquer
inclinação no copo antes do toca-lo na boca é quase certeza de derramar.
Encostando
o copo verticalmente na boca, temos a segurança agora de que podemos inclina-lo
sutilmente, para que a água toque os lábios e por fim chegue ao seu destino.
Então,
devolve-se o copo ao criado mudo e passa-se à leitura de mais um capítulo,
repetindo-se o gesto, tantos quantos forem os capítulos a serem lidos até se
chegar ao limite do sono. A partir daí, em vez do dedo indicador, será o
marcador de página quem fará o papel de indicar o local exato para retomada da
leitura no dia seguinte, no momento em que o livro é deixado no criado mudo em
definitivo.
Finalmente,
toma-se o último gole de água, apaga-se a luz do quarto e ignora-se a incipiente
vontade de fazer xixi, mantendo o compromisso de não deixar a posição, salvo
raríssimas exceções.
Sds,
Hugo
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